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sexta-feira, 29 de abril de 2011

Não posso adiar o amor



Não posso adiar o amor para outro século
Não posso
Ainda que o grito sufoque na garganta
Ainda que o ódio estale e crepite e arda
Sob montanhas cinzentas
E montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
Que é uma arma de dois gumes
Amor e ódio

Não posso adiar
Ainda que a noite pese séculos sobre as costas
E a aurora indecisa demore
Não posso adiar para outro século a minha vida
Nem o meu amor
Nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa
In: Viagem através duma Nebulosa, 1960



E a Vida foi, e é assim, e não melhora.
Esforço inútil. Tudo é ilusão.
Quantos não cismam nisso mesmo a esta hora
Com uma taça, ou um punhal na mão!

Mas a Arte, o Lar, um filho, António? Embora!
Quimeras, sonhos, bolas de sabão.
E a tortura do Além e quem lá mora!
Isso é, talvez, minha única aflição.

Toda a dor pode suportar-se, toda!
Mesmo a da noiva morta em plena boda,
Que por mortalha leva... essa que traz.

Mas uma não: é a dor do pensamento!
Ai quem me dera entrar nesse convento
Que há além da Morte e que se chama A Paz!


António Nobre

PARA HOJE



É preciso ficar, aqui, entre os destroços,
E cinzelar a pedra e recompor a flor.
É preciso lançar no vazio dos ossos
A semente do amor.

É preciso ficar, aqui, entre os caídos,
E desmontar o medo e construir o pão.
É preciso expulsar dos cegos dias idos
A insónia da prisão.

É preciso ficar, aqui, entre os escombros,
E libertar a pomba e partilhar a luz.
É preciso arrastar, pausa a pausa, nos ombros,
A ascensão de uma cruz.

É preciso ficar, aqui, entre as ruínas,
E aferir a balança e tecer linho e lã.
É preciso o jardim a envolver oficinas:
É preciso amanhã.

António Manuel Couto Viana

QUANDO DESAPARECER



Quando desaparecer
hei-de pedir à noite
que me consuma com ela
que me devaste a alma
não quero mais
quero desaparecer na noite
e só de noite consumir-me

António Gancho

SINTAXE



Aonde a planície já não tiver um sentido
e os campos forem já só o horizonte
aí o teu vestido há-de ser cor esmaecido
e sobre ti a minha fronte.
Por te sobre os joelhos uma flor rubra
por te no lugar das pernas o mais amor que me houver
aí onde a flor deixa o pólen
aí o sémen mulher.
Por te sobre o sémen o gemido do teu ato
por te sobre o gemido
a planície sem sentido
aí o teu vestido há-de ser cor esmaecido
por te sobre as pernas me dilato.

António Gancho

AURORA



"É de ouro o primeiro verde da natureza
O matiz mais difícil de conservar.
A primeira folha é como uma flor
Que pouco mais de uma hora vai durar.
Depois, a folha dá o lugar à folha.
Assim se malogrou o Paraíso,
Assim se vai da madrugada ao dia.
Nada do que é d'ouro pode durar:"
(Robert Frost, in "Poemas Completos")

"Calou-se o murmúrio das antigas brisas,
Nem medos de ausências na hora encoberta!
Desenham-se imagens de areia, imprecisas,
sobre os limos verdes da praia deserta!"
("Apontamento" (excerto),
in António de Sousa Freitas "Novamente Aventura")


António Sousa Freitas

O que desejei às vezes


"O que desejei às vezes
Diante do teu olhar,
Diante da tua boca!
Quase que choro de pena
Medindo aquela ansiedade
Pela de hoje - que é tão pouca!
Tão pouca que nem existe!
De tudo quanto nós fomos,
Apenas sei que sou triste."

António Botto

Ó Pátria mil vezes Santa,


Ó Pátria mil vezes Santa,
Meu Portugal, minha terra,
Onde vivo e onde nasci!
Na tua História me perco,
E nela tudo aprendi.
Mesmo que fosses pequena
E eu te visse pobre e nua,
Ninguém ama a sua Pátria por ser grande,
Mas sim por ser sua!


António Botto (Portugal)

TEMOR DE NÃO HAVER DEUS



Temia não ressuscitar de novo:
eram tantas as mortes, que vivera
no decurso da sua vida até agora,
que morria pra não viver já morto

E continuava cego, só e absorto,
pálido entre símbolos de cera,
a caminhar no tempo, sobre a hora,
tal como sobre a água em passo curto

De tudo o que aprendera não constava
nada, que o ensinasse a morrer já
sem perguntar a Deus, se Deus existe

A certeza maior da sua fé
à maior alegria não quadrava,
mas somente à menor, que é quase triste

António Barahona
in ‘Sombra das Minhas Mãos’ (1998)

No seu jardim feito de tinta...



No seu jardim feito de tinta...
com insólita serenidade
o poeta percorre as áleas da memória
e caminhando por entre signos
contempla a distração nula do tempo
o paradoxo incrível do ser
a ferida íntima da alma


Ana Hatherly

ROSA PÁLIDA



Rosa pálida, em meu seio
Vem querida, sem receio
esconder a aflita cor.
Ai! a minha pobre rosa!
Cuida que é menos formosa
Porque desbotou de amor.

Pois sim... quando livre, ao vento,
Solta da alma e pensamento,
Forte de sua isenção.
Tinhas na folha incendiada
O sangue, o calor e a vida
Que ora tens no coração.

Mas não era, não, mais bela,
Coitada, coitada dela,
A minha rosa gentil!
Curvavam-na então desejos,
Desmaiam-na agora os beijos...
Vales mais mil vezes, mil.

Inveja das outras flores!
Inveja de quê, amores?
Tu, que vieste dos céus,
Comparar tua beleza
Às folhas da natureza!
Rosa, não tentes a Deus.

É vergonha... de quê, vida?
Vergonha de ser querida,
Vergonha de ser feliz!
Porquê? Porquê em teu semblante
A pálida cor da amante
A minha ventura diz?

Pois, quando eras tão vermelha
Não vinha zangão e abelha
Em torno de ti zumbir?
Não ouvias entre as flores
Histórias de mil amores
Que não tinhas, repetir?

Que hão-de eles dizer agora?
Que pendente e de quem chora
É o teu lânguido olhar?
Que a tez fina e delicada
Foi de ser muito beijada,
Que te veio a desbotar?

deixa-os: pálida ou corada,
Que isenta ou namorada,
Que brilhe no prado flor,
Que fulja no céu estrela,
Ainda é ditosa e bela
Se lhe dão só um amor.


Almeida Garrett

A FLOR TEM LINGUAGEM ...



A flor tem linguagem de que a sua semente não fala
A raiz não parece dar aquele fruto
Não parece que a flor e a semente sejam da mesma linguagem
Retirada a linguagem
A semente é igual a flor
A flor igual a fruto
Fruto igual a semente
Destino igual a devir.
E era o que se pedia: igual.


Almada Negreiros

A SOMBRA SOU EU



A minha sombra sou eu
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei dó que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e que não me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!


Almada Negreiros

NÃO ENCONTRASTE A RUA



Não encontraste a rua
Não encontraste a casa
Não encontraste a mesa
No café que alguém
Por engano indicou.

Mas a cidade é esta
E não outra

Não encontraste o rosto

O anel caiu
Ninguém sabe aonde.


Alberto de Lacerda

quinta-feira, 28 de abril de 2011

O HOMEM QUE VINHA AO ENTARDECER



(Ouvindo “Sonho de Um Camponês”, por Teta Lando)


Falava com devagar, ajeitando as
palavras. Falava com cuidado,
houvesse lume entre as palavras.

Chegava ao entardecer, os sapatos
cheios de terra vermelha e do perfume
dos matos.

Cumpria rigorosamente os rituais.

Batia primeiro as palmas (junto
ao peito)
Depois falava.
Dos bois, das lavras, das coisas
simples do seu dia-a-dia. E todavia
era tal o mistério das tardes quando
assim falava
que doía.


José Eduardo Agualusa
(in Palavra de Poeta - Antologia)

MUDANDO DE CONVERSA



Não me venham falar de éticas
Prefiro locomotivas
Ou motivos loucos para ser feliz
Prefiro vagões de urânio e feijão
Atravessando o país
Vendo o povo acenando lenços brancos
(Campos férteis)
Aos que vão sul a norte
Leste oeste
Trilhos novos, outros brasis

E eu menino outra vez a dar adeus aos tempos da antihistória
Quero sorrir das janelas de trens supersônicos
Em trilhos magnéticos
E novamente pensar que podemos alcançar as estrelas


José Carlos Capinan
Inédito. Feito em Dakar, em maio/2006.