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sábado, 21 de maio de 2011
O INEVITÁVEL
Sei de caminhos em descaminhos
do tropel de loucas vozes
de desavisadas ilusões
e de noites a dormirem ébrias
com seios descobertos
sem pudor, talvez.
Mas sei também
das caminhadas falantes
com voz de maciez em pétalas
a rasgar manhãs acortinadas
enquanto não há palhaços de circo
e nem disfarçados carnavais.
Só sei também de sóis em chuvas
a se vestirem de noivas
de sementes
a florescerem campos amarelos
de bocas cumprindo perdões
e de esperanças
comungando certezas.
Alvina Nunes Tzovenos
In: Palavras ao Tempo
FELICIDADE
Quando se é feliz
as palavras possuindo cores
alçam vôos de peregrinações
eternas.
Quando se é feliz
há uma cantiga amiga
leveza de neve caída
com a doçura do silêncio.
Quando se é feliz
os pássaros não são fugidios
as noites e dias são longos demais
as nuvens não desabam.
Quando se é feliz
a vida é noiva da esperança
e a criança é sutil demais
e o beijo permanece eterno.
Quando se é feliz
a vida e a morte
entrelaçadas
se vestem de carícias iguais.
Alvina Nunes Tzovenos
In: Palavras ao Tempo
quarta-feira, 4 de maio de 2011
CANÇÃO
"As Folhas mortas"
Oh, eu queria tanto que você se lembrasse,
Dos dias felizes quando nós éramos amigos,
Nesse tempo, a vida era mais bela,
E o sol queimava mais que hoje.
As folhas mortas são colhidas com uma pá.
Você vê, eu não me esqueci.
As folhas mortas são colhidas com uma pá,
As lembranças e os arrependimentos também,
E o vento do norte as leva,
Na noite fria do esquecimento.
Você vê, eu não me esqueci,
Da canção que você cantava...
É uma canção que parece com a gente,
Você que me amava, eu que te amava.
Nós vivíamos, os dois, juntos,
Você que me amava, eu que te amava.
E a vida separa aqueles que se amam,
Levemente, sem fazer barulho.
E o mar apaga, sobre a areia,
Os passos dos amantes separados.
Nós vivíamos, os dois, juntos,
Você que me amava, eu que te amava.
E a vida separa aqueles que se amam,
Levemente, sem fazer barulho.
E o mar apaga, sobre a areia,
Os passos dos amantes separados..."
Jacques Prévert
sexta-feira, 29 de abril de 2011
Não posso adiar o amor
Não posso adiar o amor para outro século
Não posso
Ainda que o grito sufoque na garganta
Ainda que o ódio estale e crepite e arda
Sob montanhas cinzentas
E montanhas cinzentas
Não posso adiar este abraço
Que é uma arma de dois gumes
Amor e ódio
Não posso adiar
Ainda que a noite pese séculos sobre as costas
E a aurora indecisa demore
Não posso adiar para outro século a minha vida
Nem o meu amor
Nem o meu grito de libertação
Não posso adiar o coração
António Ramos Rosa
In: Viagem através duma Nebulosa, 1960
SÓ
E a Vida foi, e é assim, e não melhora.
Esforço inútil. Tudo é ilusão.
Quantos não cismam nisso mesmo a esta hora
Com uma taça, ou um punhal na mão!
Mas a Arte, o Lar, um filho, António? Embora!
Quimeras, sonhos, bolas de sabão.
E a tortura do Além e quem lá mora!
Isso é, talvez, minha única aflição.
Toda a dor pode suportar-se, toda!
Mesmo a da noiva morta em plena boda,
Que por mortalha leva... essa que traz.
Mas uma não: é a dor do pensamento!
Ai quem me dera entrar nesse convento
Que há além da Morte e que se chama A Paz!
António Nobre
PARA HOJE
É preciso ficar, aqui, entre os destroços,
E cinzelar a pedra e recompor a flor.
É preciso lançar no vazio dos ossos
A semente do amor.
É preciso ficar, aqui, entre os caídos,
E desmontar o medo e construir o pão.
É preciso expulsar dos cegos dias idos
A insónia da prisão.
É preciso ficar, aqui, entre os escombros,
E libertar a pomba e partilhar a luz.
É preciso arrastar, pausa a pausa, nos ombros,
A ascensão de uma cruz.
É preciso ficar, aqui, entre as ruínas,
E aferir a balança e tecer linho e lã.
É preciso o jardim a envolver oficinas:
É preciso amanhã.
António Manuel Couto Viana
QUANDO DESAPARECER
SINTAXE
Aonde a planície já não tiver um sentido
e os campos forem já só o horizonte
aí o teu vestido há-de ser cor esmaecido
e sobre ti a minha fronte.
Por te sobre os joelhos uma flor rubra
por te no lugar das pernas o mais amor que me houver
aí onde a flor deixa o pólen
aí o sémen mulher.
Por te sobre o sémen o gemido do teu ato
por te sobre o gemido
a planície sem sentido
aí o teu vestido há-de ser cor esmaecido
por te sobre as pernas me dilato.
António Gancho
AURORA
"É de ouro o primeiro verde da natureza
O matiz mais difícil de conservar.
A primeira folha é como uma flor
Que pouco mais de uma hora vai durar.
Depois, a folha dá o lugar à folha.
Assim se malogrou o Paraíso,
Assim se vai da madrugada ao dia.
Nada do que é d'ouro pode durar:"
(Robert Frost, in "Poemas Completos")
"Calou-se o murmúrio das antigas brisas,
Nem medos de ausências na hora encoberta!
Desenham-se imagens de areia, imprecisas,
sobre os limos verdes da praia deserta!"
("Apontamento" (excerto),
in António de Sousa Freitas "Novamente Aventura")
António Sousa Freitas
O que desejei às vezes
Ó Pátria mil vezes Santa,
TEMOR DE NÃO HAVER DEUS
Temia não ressuscitar de novo:
eram tantas as mortes, que vivera
no decurso da sua vida até agora,
que morria pra não viver já morto
E continuava cego, só e absorto,
pálido entre símbolos de cera,
a caminhar no tempo, sobre a hora,
tal como sobre a água em passo curto
De tudo o que aprendera não constava
nada, que o ensinasse a morrer já
sem perguntar a Deus, se Deus existe
A certeza maior da sua fé
à maior alegria não quadrava,
mas somente à menor, que é quase triste
António Barahona
in ‘Sombra das Minhas Mãos’ (1998)
No seu jardim feito de tinta...
ROSA PÁLIDA
Rosa pálida, em meu seio
Vem querida, sem receio
esconder a aflita cor.
Ai! a minha pobre rosa!
Cuida que é menos formosa
Porque desbotou de amor.
Pois sim... quando livre, ao vento,
Solta da alma e pensamento,
Forte de sua isenção.
Tinhas na folha incendiada
O sangue, o calor e a vida
Que ora tens no coração.
Mas não era, não, mais bela,
Coitada, coitada dela,
A minha rosa gentil!
Curvavam-na então desejos,
Desmaiam-na agora os beijos...
Vales mais mil vezes, mil.
Inveja das outras flores!
Inveja de quê, amores?
Tu, que vieste dos céus,
Comparar tua beleza
Às folhas da natureza!
Rosa, não tentes a Deus.
É vergonha... de quê, vida?
Vergonha de ser querida,
Vergonha de ser feliz!
Porquê? Porquê em teu semblante
A pálida cor da amante
A minha ventura diz?
Pois, quando eras tão vermelha
Não vinha zangão e abelha
Em torno de ti zumbir?
Não ouvias entre as flores
Histórias de mil amores
Que não tinhas, repetir?
Que hão-de eles dizer agora?
Que pendente e de quem chora
É o teu lânguido olhar?
Que a tez fina e delicada
Foi de ser muito beijada,
Que te veio a desbotar?
deixa-os: pálida ou corada,
Que isenta ou namorada,
Que brilhe no prado flor,
Que fulja no céu estrela,
Ainda é ditosa e bela
Se lhe dão só um amor.
Almeida Garrett
A FLOR TEM LINGUAGEM ...
A SOMBRA SOU EU
A minha sombra sou eu
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei dó que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e que não me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!
Almada Negreiros
NÃO ENCONTRASTE A RUA
quinta-feira, 28 de abril de 2011
O HOMEM QUE VINHA AO ENTARDECER
(Ouvindo “Sonho de Um Camponês”, por Teta Lando)
Falava com devagar, ajeitando as
palavras. Falava com cuidado,
houvesse lume entre as palavras.
Chegava ao entardecer, os sapatos
cheios de terra vermelha e do perfume
dos matos.
Cumpria rigorosamente os rituais.
Batia primeiro as palmas (junto
ao peito)
Depois falava.
Dos bois, das lavras, das coisas
simples do seu dia-a-dia. E todavia
era tal o mistério das tardes quando
assim falava
que doía.
José Eduardo Agualusa
(in Palavra de Poeta - Antologia)
MUDANDO DE CONVERSA
Não me venham falar de éticas
Prefiro locomotivas
Ou motivos loucos para ser feliz
Prefiro vagões de urânio e feijão
Atravessando o país
Vendo o povo acenando lenços brancos
(Campos férteis)
Aos que vão sul a norte
Leste oeste
Trilhos novos, outros brasis
E eu menino outra vez a dar adeus aos tempos da antihistória
Quero sorrir das janelas de trens supersônicos
Em trilhos magnéticos
E novamente pensar que podemos alcançar as estrelas
José Carlos Capinan
Inédito. Feito em Dakar, em maio/2006.
quarta-feira, 13 de janeiro de 2010
Hoy quiero regresar..
Hoy quiero regresar.
Tengo miedo al saber
que la higuera se va volviendo grana,
y al viejo nisperero le han crecido los gajos
hasta alcanzar la casa.
Hoy quiero regresar.
Cuando febrero se acerca, ya sin frío,
para recobrar aquel remolino de almendras
y tuneras.
Aquel olor salitre y miel de abeja
que se despeñaba, cuesta abajo,
por el camino de la ermita y los dragos.
Hoy quiero regresar
al muelle, las noraes, y la sirena de los barcos.
Regresar a ti,
al otro lado de los sueños,
por donde multiplicas
la ternura y los muertos.
Elsa López
De: "Inevitable océano" 1982
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